the land of confusion

diário de um toxicodependente


Olá, eu sou o Tiago
E gasto tudo o que tenho na droga…
Quero ver se poupo uns guitos,
Mas ‘tá escasso e nunca sobra.

Comecei com o tabaco
Ainda nem tinha entrado para a escola,
Dantes ia lá pa passar o ano
Agora é só pa pedir esmola.

Ficaram as marcas do vício:
Ficou para trás a matemática,
Filtros são pontas de livros
De psicologia e de gramática.

A junção da bebida e do fumo
Agradava-me portanto tornei-a diária:
Passei a ter uma mente mais perversa
Mais violenta, mais primária.

Começo a sair mais com os putos,
A fumar coisas mais sérias:
Começo a ter as minhas trips
E a contaminar as minhas artérias.

Começo a ver um novo mundo
E a ir a festivais,
A conhecer novas sensações,
Comprimidos e locais.

Novos spots trazem novas pessoas
E estas trazem novas mocas,
Que, por sua vez, trazem euforia
E atitudes mais porcas.

Sinto-me abandonado:
Nunca mais ‘tive com a minha dama…
Os sentimentos são complicados,
O meu coração não passa de lama!

Uma ganza puxava sempre outra,
O pessoal dizia-me que ‘tava a abusar:
Mas se é p’ra ver este mundo de merda,
Mais vale dar em tudo o que posso dar.

Torna-se um ciclo vicioso:
Solto a cabeça no tampo da mesa
À espera que a (puta da) sorte se deixe de merdas
E que, duma vez, apareça.

A insanidade seca-me por dentro
E paralisa-me a cabeça:
Encosto-me ao canto do quarto
E rezo só para que amanheça.

Via as cenas mais belas:
Havia mais harmonia.
Em todo o lado havia música
E era tão pura que me fazia

Querer ouvi-la todo o dia
Sentia-me mais forte e capaz,
Mais criativo e bem-disposto,
Mais importante e eficaz.
(mentira)


Via sempre tudo à roda
Ou não via nada, de facto,
Enquanto a pestana se alastrava
Ia perdendo o meu tacto.

A ressaca é fodida:
A escola da vida é para aprendizes;
Mas não tivesse entrado neste mundo
Não teria estas cicatrizes.

Não teria experiência de vida
Não teria fama de agarrado,
Mas se o não tivesse sido,
(Provavelmente) Já me tinha suicidado.

Pouco tardou até desviar
Guita das contas dos meus pais,
Para poder gastar em dívidas
E em substâncias ilegais.

O mercado é variado
E há sempre novidades,
Além disso sinto-me mal e já não controlo
Os meus distúrbios alimentares.

Orientaram-me branca,
É uma nova porta que s’abre:
“Ou experimento ou paro de vez”
-Desperdiço mais uma oportunidade!

Já tremo, gaguejo e coxeio
E julgo que isto é só o início:
Tornei-me pó, sangue e violência
E tudo isto por causa do vício.

Torna-se um ciclo vicioso:
Rolo os dados no tampo da mesa
À espera que a (puta da) sorte se deixe de merdas
E que, duma vez, apareça.

O frio seca-me por dentro
E paralisa-me a cabeça:
Encosto-me aos sacos dos contentores
E rezo só para que amanheça.

Perdi a alma e a cabeça,
Deixei de ser um homem livre:
Sou completamente limitado
Pela necessidade de consumir.

Já vi passar muitas neves,
Já vi passar muitas linhas,
Neste momento olho para as filhas
Que outrora disse serem minhas…

Dantes achava graça
A sufocar-me em coca e alcatrão,
Hoje já não acho tanta piada:
Tenho o corpo em sangue e perdi um pulmão.

Mas não me fiquei por isto,
Procurei novas vertentes:
Novas pastilhas, novas visões,
Novos ácidos e andamentos.

Dizem que não racionalizo,
Mas percebo bem o que se passa:
Percebo que ’tou farto de dormir
Do lado de fora da casa!

De comer a mesma merda
Que os gatos da rua comem,
De perder, cada vez mais,
A noção do que é ser homem.

Por favor, não se preocupem,
Eu estou bem: estou acordado!
Nada posso contra as insónias
Que me têm dilacerado!

Tenho os braços dormentes,
A pulsação a aumentar,
Levanto a manga da camisa:
Não há mais por onde picar.

Nas pernas não posso:
Tenho a pele toda rasgada;
No pescoço também não:
Ainda tenho a veia infectada.

Torna-se um ciclo vicioso:
E já há muito que nem tenho mesa.
Tou à espera que a sorte se deixe de merdas
Mas duvido que ela apareça.

O desespero mata-me por dentro
E paralisa-me a cabeça:
Encosto-me ao passeio da rua
E rezo só para que amanheça.

Gastei tudo aquilo que tinha
A tentar cobrir apostas;
Não me lembro de caras amigas,
Hoje já todos me viraram costas.

A minha miúda diz que não me reconhece
E que nunca percebeu por que me espeto;
E grita-me que já estava farta de ser roubada
Sobre o conforto do próprio tecto!

Mas agora não resta nada,
Nem uma foto em tons de sépia:
Nem uma recordação ou alegria,
Nem uma unha: não resta népia.

Tsc! Hoje não pude sequer fechar uma,
Porque não tinha:
Fui à Baixa cravar uns nights
Para me afogar em nicotina.

Mas a crise afecta todos
E não ligam a problemas alheios.
-Estou cansado e subnutrido
E alimento-me de devaneios!-

Nem a ponta dum cigarro
São capazes de oferecer:
Ou me ignoram, ou “é o último”,
Ou então desatam-me a bater!

Mas que mal fiz eu ao mundo?
Porque é que ninguém me respeita?
É por não ter roupa, andar descalço,
Ou por não ter a barba feita?

Ir para reabilitação?
(Pff) já ninguém se importa!
Sempre que me tento reintegrar
Passo por alvo de chacota.

É porque falo sozinho?
É porque falo sem nexo?
Deixem-me apodrecer em paz
É a única merda que vos peço!

Torna-se um ciclo vicioso:
Vir mais um copo do tampo da mesa
À espera que a (puta da) sorte se deixe de merdas
E que, por favor, apareça.

A fome rasga-me por dentro
E paralisa-me a cabeça:
Encosto-me as ombreiras dos cafés
E rezo só para que amanheça.

Atrevem-se a gozar
Quando um gajo consome ou se pica?!
Podem crer que não é a droga:
É a vossa doença que me frita!

Sinto-me tão sozinho…
- E nunca mais tiveste uma rata!
Quem disse isso? -Eu não fui!
Eu também não, não disse nada!

Eu ouço vozes e morro de fome,
Vocês matam-se uns aos outros para terem pão!
Essa doença está convosco:
Comigo só está a maldição.

Vêm à superfície os tiques nervosos.
E os meus medos mais bem escondidos.
A alma foi vendida
E com ela os meus sentidos!...

Não aguento esta dor:
Sinto o crânio a rachar,
Gritos ecoam-me no cérebro:
Fazem-me cair e vomitar!

É frustrante o modo de vida
A que isto me obriga…
O pior ainda é ver a seringa
E a mísera relação que nos liga!

Tornou-se um horário, um cronómetro,
Uma autêntica obsessão;
Tornou-se um modo de estar, um modo de ver:
-A minha alucinação!

É impressão minha
Ou o que vejo à frente é uma poça água?
Afinal não passa de cuspo
Que reflecte a minha cara.

Consegui perder tudo
E estragar uma vida decente!
Já só escrevia frases soltas:
Diário de um toxicodependente.

Já não me consigo mexer,
Já não consigo fazer nada:
Não consigo parar de tremer
E tenho as pupilas estilhaçadas.

Não há pensamento que tenha
Que não me esteja a torturar:
À minha frente vejo a arma
Que tinha acabado de carregar.

Encosto o cano ao olho:
Desesperado, procuro o meu futuro.
Desprendo o gatilho, nada vejo…

BUM!(tiro)

E finalmente fez-se escuro.


Catarina Garcia

2 comentários:

consumido disse...

muito bom .. gostei imenso

Anónimo disse...

Olá Catarina,
adorei este "poema"..o Tiago morreu como parece?? Gostava de poder dizer-lhe que a sorte existe mas dá trabalho..

stuffs